Por Lívia Borges
Desde os primórdios da humanidade o ser humano busca entender os fenômenos da natureza externa e interna. Ainda que mesclado com superstições, conseguiu vislumbrar algo transcendente a sua limitada existência. Surgiram teorias e conceitos a partir de indagações, observações, experimentações e revelações. Muitas não se sustentaram. Foram substituídas por outras e assim as concepções do sagrado foram evoluindo.
E agora, em pleno século XXI, em que podemos acessar quase todo conteúdo produzido pela humanidade, comparar histórias, contextos culturais e escrituras, como fica a nossa espiritualidade? Podemos ter a falsa sensação de que temos todo esse conhecimento ao passarmos os olhos sobre uma postagem ou salvarmos algum pdf. Fazemos download, arquivamos, e o que vivemos?
Quantas vezes nos debruçamos a degustar um conteúdo? A ansiedade pelo novo não permite. Seguimos distraídos de janela em janela, links e anúncios que se abrem. E nos iludimos achando que já assimilamos tudo que os conteúdos oferecem ou que conseguiremos acessar tudo que foi salvo para uma leitura posterior. O mesmo acontece quando se trata de absorver e vivenciar as virtudes que as escrituras recomendam. Por conhecer o que é politicamente correto, seguimos achando que já somos o potencial de virtude que há em nós. Tornamo-nos hábeis em julgar os outros, do pouco que reconhecemos em nós mesmos. Muito desse potencial pode continuar adormecido durante toda vida e os equívocos não reconhecidos, sucedendo-se um após outro. Principalmente se construímos uma persona ideal para assuntos espiritualistas e tivermos uma plateia interessada.
O teatro segue. O palco pode ser uma igreja, templo, terreiro, mesquita, centro etc. ou ser a ausência declarada de todas elas. O que importa não é o local, e sim a atitude.
Se aprofundarmos o sentido da atitude, veremos quão incompatível com a espiritualidade é a manipulação, a fantasia de superioridade, exploração, deslealdade, sedução, ainda que não consumada, e todas as coisinhas sórdidas que existem entre "irmãos" de fé. Estas são deliberadas, oriundas de desvios de caráter. Não são aquelas imperfeições que acometem a todos nós diariamente. Estas são graves. Mas, quem se importa? Seguem líderes com milhares de seguidores nas redes sociais, compartilham mensagens de positividade, ecologia, veganismo, solidariedade, sustentabilidade e podem até praticar yoga em academia, cumprindo os roteiros da moda. Uma espécie de superficialidade pactuada que mantém o status quo, impedindo a manifestação da espiritualidade autêntica.
A satisfação imediata de crenças oriundas de um ego imaturo pode apaziguar temporariamente a sede de algo mais profundo. Desta forma as motivações egoístas continuam sem limites em seu propósito destrutivo e continuam a usar o outro como meio para fins nem sempre visíveis e, muitas vezes, opostos à espiritualidade proclamada.
Espiritualidade está muito além de pagamento, curtidas, estética, vaidades, fantasias, discursos e devaneios intelectuais. É um trabalho sincero, silencioso, profundo, diário, para remover a crosta que encobre o diamante de nosso verdadeiro Ser, transformando o caráter e aumentando o altruísmo. Está no sentido inverso dos holofotes e do poder. Não é por acaso que todas as tradições religiosas e caminhos marciais possuem regras e virtudes que definem claramente princípios universais. Para receitas mágicas, turbinadas, o tempo pode ser um aliado a confrontar as mudanças proclamadas com os fatos.
O teste do caráter se aplica tanto aos discípulos quanto aos candidatos a "guru". Por vezes, mesmo constatada a reprovação, o uso de desculpas e negações servem para sustentar a mentira conveniente que alguém construiu para si mesmo. Proteger um pseudo guru que concede algum privilégio, é preservar o desejo de autoimportância. Admitir que essa pessoa era alguém comum e nunca foi um mestre de verdade, terá de admitir o doloroso engano e a própria infantilidade. Reconhecer que se intitulou mestre com a desculpa de curar, ensinar e ajudar as pessoas, precisará se conscientizar de suas motivações egoístas e da necessidade de compensar algum complexo. Vaidades e carências podem andar juntas por muito tempo, cujas satisfações e promessas disfarçam a fome da alma, mas jamais saciam.
---
Lívia Borges é psicóloga, mestre em ciência política, com especialização em psicossomática junguiana, e praticante de meditação yoga e vedanta.
Muito boa reflexão.