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Psicologia – lidando com a deficiência

Atualizado: 23 de dez. de 2019

Por Lívia Borges

O complexo universo do ser humano não cabe em linhas paralelas, tampouco se pode generalizar características tão distintas como a deficiência física, intelectual e mental com suas especificidades. Sem tantas alusões à deficiência, podemos salientar o que permanece intacto: O Ser que se tornou pessoa e, como pessoa, produz história. Todas as pessoas possuem dentro de si o belo, o bom, o perfeito e o eterno, como características essenciais do Ser. Nesse sentido somos iguais. Quando nos expressamos damos um colorido único, belo ou feio, à tela histórica. Deste modo somos todos diferentes, apesar da massificação cultural corromper essa originalidade. A deficiência física, mental, intelectual ou sua ausência, não nos torna diferentes, porque já o somos na maneira de ser, sentir, pensar, criar.


Criamos diariamente situações, encontros e desencontros, pela força de nossas próprias escolhas, quer saibamos ou não. Partimos no afã de conquistas, que nem sabemos se efetivamente são nossas, já que o meio exerce grande influência sobre nós. Misturamos tantos conceitos de bem e mal e, sem discernir, investimos em negar o que nos desagrada. Buscamos o oposto sem compreender a função de um e de outro, primeiro dentro de nós mesmos, e depois nas relações. Queremos no outro a perfeição que não fomos capazes de encontrar em nós mesmos. Queremos um mundo ideal, pronto, definido por critérios alheios. E quem se responsabiliza por essa realidade? Quem a transforma? Em última instância, somos sempre responsáveis por nossa história, mesmo interagindo com a responsabilidade de outras pessoas, e por isso temos a capacidade de transformá-la.


Cada um deve encontrar motivação dentro de si mesmo, não para provar seu valor a quem quer que seja, mas para superar as desafiadoras dificuldades para que o Ser se expresse livremente, usufruindo o prazer da realização. Mas isso, inicialmente, precisa ser ensinado. A figura do outro, qualquer que seja ele, é importante nessa aprendizagem: alguém que ame, para que se aprenda a amar e confiar; alguém que respeite e valorize, para que se conheça esses valores. Alguém que, acima de tudo, acredite no potencial do ser e o estimule, vendo além dos estereótipos. Que dê um sentido de liberdade com responsabilidade, estimulando para a vida, para a auto-realização. Alguém que saiba olhar o igual, respeitando as diferenças, despertando a criatividade.


Com certeza não é todo dia que encontramos alguém assim. Talvez porque, entre rejeições e preconceitos, a vida queira nos lembrar que podemos ser esse alguém. Autoconceito, autoconfiança e auto-estima se constroem nesses encontros. Acontece que a pessoa com deficiência é, de certo modo, mais vulnerável à frustração, o que pode levá-la a perder sua espontaneidade e seu valor próprio, ou nem sequer chegar a construi-lo. Excesso de rejeição prejudica a formação de uma imagem positiva, consequentemente torna-se difícil estimar o que não é bom. Incapacidades específicas se generalizam em inferioridade. O detalhe passa a ser mais importante que o todo, a deficiência sobrepujando a pessoa. Disso decorrem graves erros: segregação social, todos os tipos de abuso, superproteção, infantilização, negação da sexualidade - formas de rejeição, embora algumas sob a máscara da moral.


Suas carências e necessidades são as mesmas de qualquer pessoa, acrescidas das peculiaridades de cada deficiência, o que nos leva a entender que são apenas pessoas com necessidades especiais. Tudo o que aprenderem sobre afeto e contato físico influenciará o seu comportamento. Qualidade e continuidade juntas promovem progressos duradouros, seja em atendimento especializado, na escola ou ambiente familiar. Medo, isolamento, agressividade acentuada, voltada para si ou para outros, constantes práticas masturbatórias e toda variedade de comportamentos inadequados podem surgir como resposta e merecem a devida atenção, investigando-se as causas de origem psicológica, neurológica ou social. Naturalmente, as reações se diferenciam em função do tipo e extensão da lesão, se congênita ou adquirida, das disfunções cerebrais e do período de desenvolvimento.


Em geral, a pessoa com deficiência se vê mais limitada às novas experiências, não só pela deficiência e sim pelas restrições culturais, o que diminui a variedade de estímulos fundamentais ao desenvolvimento emocional, cognitivo e motor. A própria forma de se referir a uma pessoa com deficiência ou necessidades especiais como deficiente parece negar-lhe a condição de pessoa e de Ser. Este é um conceito estático e impeditivo quando não se distingue ter e ser. Dizer que alguém tem uma deficiência é diferente de dizer que esse mesmo alguém é deficiente. No primeiro, existe alguém que está por trás e é maior que a deficiência, sua condição de pessoa é preservada. Já no segundo, alguém é igualado à deficiência que porta, sua condição de pessoa limitada à medida de sua deficiência. Ainda que, nos casos mais severos de deficiência, a condição de pessoa não seja consciente e não lhe seja possível tornar-se objeto de reflexão, restar-lhe-á a condição de Ser, para o qual toda limitação é transitória. Nestes casos, mesmo não sendo possível desenvolver conceitos próprios, é possível sentir-se amado, aceito; parte e não à parte de seu meio.


Desenvolver suas potencialidades é um direito de qualquer pessoa. Impedi-la, uma agressão. A superproteção e infantilização destroem a autonomia. Fazer tudo por alguém desqualifica- o, torna-o incapaz e incompetente, ou aumenta sua incapacidade, impedindo-o de se tornar sujeito do próprio agir. Fazer da pessoa com deficiência o centro das atenções, também não soluciona, além do que, ensina a utilizar a deficiência para obter afeto, chantagear, provocar ciúmes, entre outras reações, nas pessoas de seu convívio. Poupá-la do sofrimento pelas experiências da vida pode privá-la de amadurecer. Extrair o máximo dessas experiências é um desafio pessoal.


O sacrifício dos pais é socialmente aceito, mas tem um lado negativo ao transformar o filho em devedor. Que moeda paga a felicidade perdida? O filho passa a sentir-se culpado pelo sofrimento dos pais, enquanto os pais, de certa forma, procuram aliviar sua própria culpa ou encontram uma justificativa para sua infelicidade. Transformar o filho num símbolo ideal deixa-o sem o direito de errar, de expressar sua justa rebeldia. A rejeição pode se ocultar no heroísmo que busca direta ou indiretamente qualquer tipo de reconhecimento externo. Na satisfação pessoal do agir está inserido o melhor reconhecimento. Herói é aquele que encontrou o caminho dentro de si mesmo, a despeito das adversidades e indica para outros, com ou sem parentesco, o caminho a ser percorrido individualmente. O que não quer dizer solitariamente! Por outro lado, existem pais e filhos que extraem das experiências diárias a máxima realização, e nos dão uma lição de vida: desapegam-se de culpas e sonhos desfeitos do passado, não se acomodam ante a incerteza do futuro e promovem vitórias atuais no relacionamento.


Transformar as primeiras emoções ao ter um filho com deficiência mental, intelectual ou física, em uma relação saudável e prazeirosa, onde todos descubram novos referenciais, onde um não se limite pelo outro e não se culpem mutuamente, é tarefa árdua, mas compensadora. Deve-se estar atento aos papéis desempenhados dentro da relação familiar, para que um papel não anule o outro (mãe e mulher, pai e homem) e para que o filho não ocupe um lugar ausente.


As potencialidades devem ser estimuladas para a satisfação pessoal, respeitando-se as capacidades básicas, e não para atender às expectativas descabidas da sociedade ou da família. Quando se educa uma criança vinculando amor à satisfação das expectativas e necessidades dos pais, desvirtua-se a base de sua própria natureza, que é perceber suas próprias exigências biológicas, sociais, emocionais, cognitivas e transcendentais. Ser exigente com uma criança para que ela corresponda aos anseios dos pais, ou de qualquer outra pessoa, é aprisioná-la à vontade de outrem, fazendo com que o amor seja condicionado ao fazer. Ser exigente para que ela supere suas limitações, descubra seus próprios anseios e os realize, é acreditar em sua capacidade; é torná-la grande e independente emocionalmente, e em muitos casos, física e economicamente também. Num relacionamento em que a aparência, o ter e o fazer não alteram o valor do ser, as limitações e os fracassos, inerentes às tentativas, são mais tranqüilamente superados. A dimensão subjetiva pode superestimar ou desvalorizar os resultados obtidos quando a rigidez comparativa insiste em desejar o desempenho alheio.


A rejeição ao que foge dos padrões acontece porque requer disponibilidade para o novo e profundas reformulações, e isso evidencia as deformidades do indivíduo e do sistema. É uma resistência natural. Negá-la também não soluciona. Reaprender a valorizar o ser por trás da forma faz com que se transcenda a limitação dos sentidos. Então, pouco importa qual o padrão estético fornecido pelo sistema que só consegue atingir as pessoas carentes do próprio valor. Primeiro tiram o valor do ser humano, depois oferecem uma imagem ideal, à qual a pessoa desavisada se agarra como se sobrevivesse a um naufrágio. Só que esqueceram de lhe contar que “a canoa era furada”. Quem encontrou em si o próprio valor não se escraviza aos modismos e estereótipos. Brinca com eles se quiser, ao invés de sofrer; age, ao invés de reclamar.


A adequação social, as exterioridades, o desempenho, as posses materiais ou intelectuais, a interdependência também têm funções no convívio, e serão saudáveis na medida em que promoverem a confirmação do valor da pessoa que os exerce, e nunca seu detrimento. A autorrealização depende dessa confirmação. O infinito agir humano, capaz de redirecionar-se a cada instante, deve corresponder à intencionalidade da Vida e convergir num único ponto: o Ser que somos, não importa o que aparentemos.


O Homem Diferente

“Exterminado o conhecimento, não haverá mais desgostos. Entre o sim e o não, que grande diferença existe? Entre o bem e o mal, qual a distância? O que todos os homens temem deve ser temido mas que imensas e infindas são as discussões que se seguem!

A multidão de homens parece satisfeita, está cheia de ardor, exaltada como num festim semelhante ao que fazem os que escalam as montanhas na primavera. Somente eu estou calmo, tranqüilo, meus desejos não deram qualquer indício da sua presença.

Sou como um recém-nascido que ainda não sorriu. Pareço abandonado, errante, sem finalidade! Os outros homens possuem o supérfluo, só eu sou por todos deserdado. O homem da multidão julga-se infalível, perspicaz, somente eu dobrado sobre mim mesmo, sou móvel como o oceano, sempre a flutuar. A multidão torna-se útil, somente eu sou inapto, tal um pária abandonado. Eu, sozinho, sou diferente de todos os homens porque venero profundamente a mãe que a todos alimenta. (o Tao).†” A Vida!

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* Artigo atualizado, de autoria de Lívia Borges, originalmente publicado no livro: Na Terra dos Anjos - Heróis Anônimos, Jane B. Lopes, Porto Alegre, Imprensa Livre: 2001, p. 165-169.

† Lao Tsé. O Livro do Caminho Perfeito - Tao Té Ching, São Paulo, Ed. Pensamento.

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