Por Lívia Borges
Tem gente que pensa que o holocausto afetou somente os judeus. Tem quem nem pensa. Tem gente que sabe. Tem quem nem sabe. Tem gente que acha que é coisa do passado. Lamentavelmente, tem quem pense que não existiu. Mas, têm os que compartilham a sua história como sobreviventes ou descendentes de sobreviventes. Fontes primárias. Não ouviram dizer ou leram em livros, viveram na carne e na alma. Gente generosa, humana, cujos olhos brilham ao ver que alguém se importa, cujo coração chora os horrores da dizimação em massa e de outras aberrações oriundas da mente insana e perversa de médicos e soldados nazistas, cujo alvo eram principalmente judeus e também pessoas de diferentes orientação sexual, pessoas com deficiência física, intelectual e mental, pessoas negras, pessoas ciganas, enfim pessoas… que poderiam ser eu e/ou você. O que nos diferencia? O que nos irmana?
Na visita que fizemos a Israel há alguns dias, conhecemos o moderno Museu do Holocausto - Yad Vashem. Fomos acompanhados por um judeu filho de mãe sobrevivente. Sentimo-nos honrados em ouvi-lo e em perceber os valores que ele transmitia em suas memórias às novas gerações. Esse é um dos sentidos de um museu. Honrar a memória das vítimas, dos heróis, e educar as novas gerações. A cada fato que ele contava e mostrava, nossos olhos acompanhavam embaçados. Nossa humanidade nos irmana na dor e na alegria. Por vezes, a respiração cedia a um silêncio que ultrapassava a ausência de palavras. Era o silêncio da alma, respeito e admiração. Eram as histórias dos “Justos Entre as Nações”. E saiba, há ali brasileiros também. São não-judeus de diversas nacionalidades que salvaram judeus durante o período do Holocausto, com risco das próprias vidas. Diante de tal altruísmo, nosso ego se redimensiona e encara a própria pequenez. Isso nos diferencia, a capacidade de se sacrificar por outra pessoa.
Durante o Holocausto, pessoas eram selecionadas para serem exploradas no trabalho nos campos de concentração e outras eram consideradas indignas de viver. Como assim? A fantasia de superioridade de uma raça não podia tolerar nada que fugisse a seus padrões de perfeição. Alguém pode se perguntar: o que isso tem a ver com a atualidade? Basta observar alguns discursos ideológicos políticos, científicos, comerciais, filosóficos ou religiosos, que se pautam na ideia exclusivista de superioridade e perfeição, seja de maneira sutil ou explícita. Isso induz ao ódio, violência e exclusão.
A presunção de superioridade permeia muitos discursos ou pregações, polarizando, dividindo, rivalizando, olvidando a condição de pessoa do segmento alijado. A utopia da perfeição estética subjaz nas propagandas, novelas e redes sociais, não deixando espaço para o lixo das emoções não processadas ou represadas pela intolerância do outro e pelos padrões inacessíveis de beleza, inteligência e condição. A presunção de superioridade atende aos conclames de egos inferiorizados, inflados pela arrogância narcísica com up-grade instantâneo em sua patética situação. Pessoas destrutivas, amáveis ou visivelmente hostis. Prontas a condenar ou a ressignificar a realidade do outro a partir dos referenciais do suposto superior, sempre melhores, é claro. Ignorantes bem polidos, não se iluda. Nem sempre aparentam a truculência dos brutos. Podem ser bem refinados, como muitos sociopatas, e caminharem conosco em muitas situações que nem percebemos.
Mas de onde vem essa busca pela superioridade e perfeição? Em diferentes tradições religiosas percebemos a ênfase na perfeição como direcionamento de conduta moral e ética e de visão. Uma visão que se abre para além das fronteiras do ego, tempo e espaço, e se expande ao infinito; cósmica, universal, inclusiva. Porém, em nossa imaturidade, isso foi muitas vezes distorcido e continua a ser, atendendo aos ditames das disputas pelo poder. Brigamos pelo reinado exclusivo de uma das pessoas que apontam as estrelas, sem contudo mirá-las. Assim não encontramos o que buscamos e acabamos por destruir os que ousam mostrar o nosso equívoco e reafirmar a direção das estrelas. Erigimos construções belas para o reinado de nosso ego, onde nos vangloriamos de estar do lado certo, superior, eleito, escolhido. Não se engane, somos capazes de comportamentos vis, por ação ou omissão, apenas para manter a pseudo certeza de nossa superioridade e precedência.
Ao mesmo tempo em que fico estarrecida, sinto-me instigada a refletir sobre um ponto mais profundo nessa busca, considerando o ser humano não somente como um corpo transitório e mente instável, ou um jogo de instintos balizados entre estímulo e resposta, e sim, como composto de diversos níveis, onde a dimensão espiritual é a mais profunda e abrangente. Com essa visão integral e a partir da influência do legado dos Upanishads, ocorre-me que a ideia de superioridade vem do espírito, de nossa genuína essência, a dimensão espiritual. Não como comparativo separatista, mas como excelência, encontrada, por exemplo, na compaixão e no amor universal. É algo que atrai, mobiliza nossas intenções, mas como não sabemos exatamente o quê, seguimos os rastros deixados, perseguindo sintomas sem conhecer a causa. Buscamos expressar essa excelência e nos equivocamos ao colocá-la como meta na vida material, no ego, nos ismos. De certo modo, ela nos move ao autoaperfeiçoamento e também às prisões do engano perfeccionista. Resultados duais próprios da ignorância. Eras de engano, guerras e destruição, talvez pelo fato de não enxergarmos nossa raiz em Deus, na Vida que é em nós antes que as religiões e ciências existissem.
De volta ao Brasil, nos juntamos à comunidade judaica no DIA INTERNACIONAL EM MEMÓRIA DO HOLOCAUSTO. Ato solene com acendimento de velas, histórias, depoimentos, poemas e vídeos, reforçando a amizade, respeito e igualdade. Algo me chamou atenção, tanto no Museu em Israel quanto nas solenidades que participamos. Não há o apelo dramático, como seria até legítimo. Há o apelo humano, sensível aos valores universais; ao valor de cada pessoa, pois cada uma importa, independente de sua origem, condição e credo; aos vínculos de amizade e apoio mútuo; à conduta preventiva para que nunca mais presenciemos tamanha atrocidade. Por outro lado, fica-nos a reflexão sobre as atrocidades do cotidiano fruto da desigualdade, corrupção, egoísmo e preconceito. Pequenos holocaustos diários para uma humanidade que se quer conhecer como civilizada.
Lívia Borges
Psicóloga e escritora
1 - Yad Vashem - Hebrew: יָד וַשֵׁם; em sentido literal, “um monumento e um nome”. The World Holocaust Remembrance Center. Memorial oficial de Israel para vitimas, mártires e heróis no período do Holocausto.
2 - Upanishads - Constituem a parte filosófica dos Vedas, sendo o final (anta), conhecido como Vedanta.
--
Imagem de capa/quarta imagem - Israel Szerman Portraits. Demais imagens, arquivo pessoal.
Comments