A paz que é lembrada no dia 1º nos espera em todos os outros dias do ano.
O dia primeiro de janeiro é sempre uma data marcante para muitos pela sensação de “virada”. De esperança de que as coisas que não estão bem irão melhorar e de que as coisas que estão bem irão permanecer bem! Roupa branca ou amarela, pular sete ondas, comer lentilhas ou uvas, queimar fogos. São superstições que o povo costuma seguir no Ano Novo. Essas coisas são importantes e ajudam a manter essa chama da esperança acesa.
Mas vale lembrar que, em 1º de janeiro de 1967, o Papa Paulo VI instituiu o Dia Mundial da Paz. Naquela época o mundo vivia a Guerra Fria e uma grande instabilidade bélica. Atualmente, o estado atual da Paz Mundial medido pelo Think Tank “International Institute for Economics & Peace – IEP, é o pior desde a 2ª. Guerra Mundial. Os principais motores da queda da paz mundial foram os conflitos em Gaza e na Ucrânia. Mas Paz não implica simplesmente ‘ausência de guerra’. Em vez disso, implica justiça, equidade e ‘liberdade do medo’.
Gandhi, um dos apóstolos da paz, não apenas propagou a paz em nível mundial, mas também a entendeu completamente. Como todos os planos de guerra começam na mente humana, torna-se absolutamente necessário torná-la a morada da paz. Sem paz interior e crescimento da espiritualidade em nível individual, não pode haver paz e tranquilidade em nível global. Para que isso aconteça, indivíduos e sociedades civis teriam que desempenhar um papel proativo.
O próprio termo ‘Lutar pela paz’ parece contraditório e antagônico. Enquanto o termo lutar pressupõe o uso de força, violência e/ou coerção, o termo ‘paz’ pressupõe a negação deles.
Gandhi escolheu lutar não porque aprovava a violência, mas porque não gostava de ser pacifista. Ele preferia o engajamento à ‘covardia’. Gandhi enfatizou o uso de meios nobres, como Satyagraha (afirmação da verdade) e Ahimsa (não violência) para chegar à paz em nível mundial. Esses métodos são ainda mais relevantes e práticos hoje do que durante o tempo de Gandhi porque encontramos uma escalada no número de conflitos nos níveis individual, local, nacional e internacional.
O termo sânscrito 'Satyagraha', pronunciado como 'sat-yah-grah-aha' implica 'apego à verdade'. Na verdade, a luta de Gandhi pela paz começa com Satyagraha. Para ele, a paz só pode ocorrer em um ambiente verdadeiro. Em um ambiente onde prevalecem sentimentos de medo, raiva, ódio, covardia e retaliação, não pode haver paz. Para Gandhi, apenas a insistência na verdade pode ajudar a resolver vários conflitos e somente resolvendo os conflitos, podemos construir a paz. Gandhi encontrou uma conexão científica entre verdade e existência. Ele acreditava que a verdade existe como nêutrons e pode ser descoberta por meio de 'conclusões matemáticas' ou 'deduções lógicas'. Ele acreditava que a realidade moral era tão certa quanto a realidade física, mesmo que não possamos vê-la a olho nu.
Gandhi foi influenciado pelo princípio de Ahimsa (não violência), considerada uma virtude fundamental no hinduísmo, budismo, jainismo, que enfatiza o fato de que a própria intenção de prejudicar alguém equivale à violência. Portanto, a não violência deve ser praticada em pensamento, ação e palavras. Implica ausência completa do sentimento de destruir, mesmo que seja uma formiga. Para Gandhi, todos os sentimentos ou ações obstrutivas, destrutivas, alienantes e "negadoras da vida" equivalem à violência, pois impedem o processo de alcançar a verdade e violam a integridade de "algo vivo".
A não violência, por outro lado, é baseada no desejo de nutrir e amar. Enquanto a violência é baseada no desejo de usar algum tipo de coerção, a não violência é baseada na força interior. Um seguidor de Satyagraha e não violência, como propagado por Gandhi, se recusa a recorrer à força física, manipulação, surra, conspirações, chantagem ou trapaça, por serem tais atitudes covardes e imorais.
O que realmente importa não é o que Gandhi disse ou fez. Sua vida foi um experimento com a verdade. Ele era um homem comum que levou uma vida extraordinária. Ele pensava que Ahimsa e Satyagraha eram as ferramentas que poderiam ser usadas efetivamente por homens e mulheres comuns. Ele não conseguia perceber o fato duro de que a maioria de nós é incapaz de se libertar de nossas fraquezas e tendências humanas naturais, como raiva, ódio, ciúme ou vingança. Assim como todos nós endossamos a verdade, mas continuamos contando mentiras no dia a dia; da mesma forma, nos entregamos à violência em pensamento, ação ou palavras consciente ou inconscientemente, apesar de nossa fé na não violência.
Isso não significa que Gandhi falhou conosco, mas significa simplesmente que falhamos com Gandhi, pois não conseguimos permanecer verdadeiros e não violentos. Nem conseguimos absorver outros valores humanos, como honestidade, polidez, empatia, compaixão ou gentileza para com nossos semelhantes, apesar das diversidades socioeconômicas, culturais, étnicas ou linguísticas prevalecentes.
A maioria dos conflitos surge devido à falta de compreensão, confiança e valores morais. O que realmente importa não são os valores que Gandhi incutiu em sua vida pessoal, mas como ele uniu milhões de pessoas em sua luta pela independência da Índia por meios não violentos, a despeito também dos muitos mártires que deram suas vidas para libertar a Índia da opressão, somando esforços para que a independência fosse inevitável.
No contexto global, precisamos pensar além do que se popularizou em Gandhi e usar a não violência como um "paradigma para a existência humana". A insistência no diálogo, na democracia e na relação civil só é possível em uma sociedade onde cada membro adere ao princípio da não violência com total dedicação. E isso é algo que é alertado em um dos épicos mais antigos da história, o Mahabharata, especificamente na parte onde se encontra o célebre diálogo entre Krishna e Arjuna, conhecido como Bhagavad Gita, texto sagrado que influenciou Gandhi, tendo, inclusive escrito comentários sobre ele. O diálogo ocorreu no meio de um campo de batalha, onde o guerreiro Arjuna não queria lutar, por aderir ao princípio de Ahimsa, contudo, Krishna mostra a ele a covardia oculta em sua justificativa, mostrando que o cenário era de injustiça e opressão, e era necessário restabelecer a virtude e cumprir o seu papel, tomando lugar na guerra. Krishna alerta que a não violência externa não é aplicável em todos os casos. Pensemos nas situações em que presenciamos violência a vulneráveis e indefesos, a omissão covarde produzirá mais violência. Mesmo Gandhi alerta que um covarde jamais será um praticante da não violência.
Chegou a hora de fazer uma escolha racional, inteligente e prática de lutar pela paz de forma não violenta. Se desejamos crescer e sobreviver, não há outra escolha a não ser viver juntos de forma não violenta, ancorados pela verdade que não se rende às conveniências.
Finalmente, vale lembrarmos de um trecho do discurso do Papa Paulo VI na primeira comemoração do Dia Mundial da Paz em 01 de janeiro de 1968:
“Um aviso deve ser mantido em mente. A paz não pode ser baseada em uma falsa retórica de palavras que são bem-vindas porque respondem às profundas e genuínas aspirações da humanidade, mas que também podem servir, e infelizmente às vezes serviram, para esconder a falta de verdadeiro espírito e de reais intenções para a paz, se não de fato para mascarar sentimentos e ações de opressão e interesses partidários. É, portanto, à verdadeira Paz, à Paz justa e equilibrada, no reconhecimento sincero dos direitos da pessoa humana e da independência das nações individuais, que nós convidamos os homens de sabedoria e força para dedicar este dia.“
___
Por Marcos Ferreira
Colaboração: Lívia Borges
Pró-Consciência®
Comentários